O sambista é um santo

03/20/2011 § Deixe um comentário

A capacidade de registrar fisicamente suas ideias, na tentativa de disponibilizar para a posteridade momentos especiais do homem enquanto ser criativo ao longo da história é, certamente, uma das virtudes da nossa espécie. Mesmo antes da invenção da escrita em pergaminho, da fotografia em daguerreótipo, do “fonautógrafo” de Martinville e do cinematógrafo dos Lumière, o pintor da era paleolítica já reproduzia na rocha da caverna a imagem dos animais que caçava. Mas hoje, milênios depois, e mesmo com tantos recursos disponíveis para documentar seus feitos, alguns destes parecem escapar à consciência do homem. Por sorte, há quem contradiga essa desatenção recorrente. “O Mistério do Samba”, filme-documentário de Lula Buarque de Hollanda e Carolina Jabor (2008), registra um dos mais importantes e quase esquecidos núcleos criativos da música brasileira nos últimos 100 anos: a arte da Velha Guarda da Portela. Jus a espécie!

O artista pré-histórico pintava os animais que caçava na perspectiva em que os via, ou seja, conforme o ponto de vista pelo qual os enxergava. Supunha, assim, ter um poder divino sobre aquela presa por possuir sua imagem. Em certa medida, o registro audiovisual repete esse encanto. A recriação do objeto observado pela câmera conforme o olhar de seu criador está em todas as escolhas feitas por este ao transpor seu pensamento para o universo das imagens em movimento. O conceito do enquadramento, a linguagem fílmica, o tempo imagético, a composição da fotografia, os elementos sonoros, a subjetividade do estilo. Tudo representa a forma como o autor enxerga aquilo que quer mostrar.

Mesmo sendo, em tese, um registro mais cronista, mais “fiel” à realidade, o documentário não foge ao que Jean-Claude Carrière intitula de “linguagem secreta do cinema”. Segundo o roteirista, ensaísta e crítico cinematográfico francês, essa capacidade de se utilizar de instrumentos de persuasão para nos iludir é típica da relação emocional e física do ser humano com o cinema. Como o ser pré-histórico, acreditamos como expectadores, com indolência e prazer, que capturamos a “presa”, ao mesmo tempo em que passamos, igualmente, a sê-la. Essa “magia da mentira” a que propositalmente nos submetemos está em “O Mistério do Samba” – a começar pela inclinação ao enigma presente já no título. O documentário parece, se não ir ao encontro, ao menos não fugir desta máxima inevitável.

O time de bambas da Portela, em foto de 2008

No filme, a cantora Marisa Monte conduz uma série de entrevistas que formam um painel do cotidiano e histórias da Velha Guarda da Portela, grupo de veteranos artistas de uma das escolas de samba mais populares do Rio de Janeiro. Como a própria Marisa escreve em seu memorável texto da contracapa do CD da Velha Guarda “Tudo Azul”, produzido por ela em 1999: “é incrível imaginar que algumas dessas músicas tenham permanecido sem registro durante tanto tempo, e que assim poderiam continuar, indefinidamente, até quem sabe, desaparecer”. (No cinema, essa constatação soa como um alerta quando se pensa, por exemplo, que boa parte dos 80% da produção cinematográfica produzida na época do cinema mudo que se extinguiu deu-se em virtude de ação humana.)

Intercalando entrevistas e depoimentos com comoventes cenas musicais, seja uma roda de samba ou um coro feminino à capela, o trabalho de Carolina e Lula (esta, experiente  documentarista da música brasileira, tendo dirigido trabalhos para Marisa, Gilberto Gil, Titãs e Milton Nascimento) é o fruto audiovisual de um projeto iniciado nos anos 70. Este projeto dedica-se a, contrariando a pecha de que o Brasil é um “país sem memória”, perpetuar uma reserva sonora que mantém algumas das características do tradicional samba carioca, inventado pelos negros no início do século XX. Em 1970, Paulinho da Viola resolveu reunir o time de bambas da Portela para gravar parte de um repertório que ele sabia ser tão rico. Tornou-se, aos 20 e poucos anos, padrinho daquela turma de velhos compositores – permanecendo no “cargo” até hoje – ao produzir o disco “Portela Passado de Glória”. Quase 30 anos depois, Marisa Monte retoma este arsenal sonoro, tornando-se personagem-chave para a feitura do delicioso CD e deste tocante filme.

“O Mistério do Samba” traz nas suas sublinhas a importância da preservação cultural como forma de compreensão do ser brasileiro e do nosso desenvolvimento como sociedade. O antropólogo brasileiro Hermano Vianna, escrevera, em 2001, o livro com o mesmo título do documentário em questão (coincidência?), onde se debruça na missão de justificar o porquê de o samba ter se tornado o símbolo do Brasil. Na visão de Vianna, o aspecto sociopolítico é a base deste processo. Segundo ele, o passo fundamental para que o gênero, nascido nos morros e subúrbios cariocas, se enraizasse na cultura do país e passasse a ser exportado foi a adoção por parte de intelectuais representativos da massa pensante elitista na primeira metade do século passado, a saber: Sérgio Buarque de Hollanda, Prudente de Moraes, Heitor Villa-Lobos e Gilberto Freyre. Reunidos com os sambistas Donga, Pixinguinha e Patrício Teixeira num pagode regado a muita cachaça e ideias nacionalistas, eles lavraram definitivamente o samba numa “noitada de violão” de 1926.

Embora o antropólogo minimize a importância popular que ritmos como o sertanejo possuem desde a época do Brasil rural, ou o significado que manifestações folclóricas como o baião e o gauderismo tenham em suas regiões –quiçá, até sobrepondo-se ao samba –, a proposta é válida. O filme concorda com esta necessidade, mas vai além. Através do registro documental, retoma a discussão de porque, nos dias de hoje, obras tão valiosas como os sambas da Velha Guarda da Portela correrem o risco de sumirem para sempre. Mais que o mistério do próprio estilo, advém o questionamento por uma identidade nacional, da qual a Velha Guarda é, ao mesmo tempo, objeto e protagonista.

O método que as diretoras se valem para tentar explorar essas obscuras vielas pessoais e sociais é o do intimismo. Isso é percebido desde a fotografia granulada – que valoriza as texturas das construções e das peles envelhecidas em contraste com a intensidade quase lúdica e carnavalesca das cores – até a montagem, que destaca momentos cinematograficamente artísticos. É nas apresentações musicais ou nos depoimentos que, por mais espontâneo que sejam, aparece o dedo sensível das diretoras. É ali que elas se fazem presente enquanto autoras, dando a roupagem que melhor intentaram àquela realidade. Cenas como a das pastoras cantando com Marisa, é um exemplo.

Reais, os “personagens” de “O Mistério do Samba” – leia-se: Jair do Cavaquinho, Monarco, Tia Eunice, Casquinha, Argemiro, Tia Doca, Áurea Maria e outros que formam o time de veteranos da Portela – fazem lembrar a artimanha usada por Paulo César Saraceni em “Natal da Portela” (Brasil/França, 1988), filme que conta a biografia do controvertido bicheiro (encarnado por Mliton Gonçalves, brilhante) fundador da escola de samba. A opção por dar o papel de Paulo da Portela, o primeiro grande compositor e “promoter” da escola, ao também sambista, mas contemporâneo, Almir Guineto, funciona muito bem. Mesmo com déficit na atuação cênica, a escolha por esta “transpersonificação”, criando uma ponte visível entre o tradicional (Paulo) e o moderno (Almir), como também mostrando uma continuação desta tradição, dá poesia ao filme. Recurso este certamente extraído do cinema de Julio Bressane, que já empregara o mesmo artifício em “Tabu” (Brasil, 1982), onde Caetano Veloso interpreta – mais como músico do que como ator – Lamartine Babo.

A câmera se aproxima de tal forma do cotidiano dos personagens de “O Mistério do Samba” que é possível enxergar as forças motivadoras de obras tão ricas. Quais são? Dor, solidão, tristeza, desamparo, amores correspondidos ou não. Em versos que lembram a poesia parnasiana, mas também bastante românticos e simbolistas, suas canções fluem com uma impressionante naturalidade e técnica, como se já nascessem velhos clássicos. São centenas de peças, muitas ainda não gravadas e que, talvez, nunca venham a ser. Melodicamente, são perfeitas, a ver por “Volta Meu Amor”, “Benjamin”, “Lenço” ou “Nascer e Florescer”, tão bem exploradas no filme. Já falecido e muito lembrado por todos, o sambista Manacéa é um caso especial. Considerado um dos grandes compositores da Portela, seu estilo majestoso, com toques eruditos bem identificáveis – assim como os conterrâneos Cartola e D. Ivone Lara –, lembram as sutilezes melódicos de um prelúdio de Bach ou o requinte clássico de uma ária de Mozart.

O filme revela, ao mostrar a realidade dessas pessoas de vida social difícil, marginalizados por muito tempo por sua cor e por sua arte, a persistência em contrapor a essa dificuldade a criação artística, como se uma força sublime e divinal os movesse. Tudo leva a crer que deve haver algo de santo nos sambistas. Talvez não em todos, mas nos BONS sambistas. Caetano Veloso, um deles, escreveu na sua “Desde que o samba é samba” que o gênero “é o grande poder transformador”. Tom Zé (outro) também já clamou por São Noel Rosa. Sambistas são, de fato, seres encantados como Monsueto, Ismael Silva, João Bosco, Dolores Duran, Chico Science, Nelson Cavaquinho, Candeia, Adoniran Barbosa. Ou Ataulfo, Martinho, Nelson Sargento, Lupicínio, Chico, Herivelto, Gil, Vinícius, Clementina de Jesus, Tom. Tantos e tantos outros… Talvez aí esteja a explicação para o apelido de “divino” a Cartola, ou para o trio Donga, João da Bahiana e Pixinguinha ser conhecido como “A Santíssima Trindade”. Paulinho da Viola – a quem só falta canonizar – me dá essa certeza em sua “Coisas do Mundo, Minha Nêga”, em que conta de forma poética a missão de um santo-sambista, imperfeito como um homem e poderoso como um deus, que, com seu violão debaixo do braço, sai pelos morros salvando almas com versos e melodias, sem, contudo, deixar de sofrer com isso.

Agora lembro que em “Orfeu Negro” (de Marcel Camus – França/Brasil, 1959), os acordes do samba cantado por Orfeu eram capazes de fazer, lá da maloca, nascer o sol… É: o mistério do samba, ao que parece, é mais transcendente do que se possa supor. Quem há de duvidar, então, que o artista das cavernas realmente não capturava a alma daqueles que pintava? Eu não me arrisco! Sou presa.

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